terça-feira, 14 de maio de 2013

A unha da verdade


Demorou a entender que, ao segurar seu queixo com a mão, o pai estava analisando seu rosto, não fazendo carinho. A explicação por trás dos olhares e sussurros desconfiados nos encontros familiares foi procrastinada. As visitas da madrinha tiveram fim. Se presente de corpo, era peça rejeitada.

Escondida atrás da porta, ouviu a mãe chorar. Carregada de culpa e vazia de esclarecimento, aos 10 anos de idade Marta não fugiu, queria saber. Suas dúvidas foram varridas pela avó, junto com o resto da sujeira indesejada para fora da casa.

Foi a filha da vizinha que, brava por perder o posto de rainha da amarelinha, a chamou de bastarda. Diante de seus olhos de coruja, ela gritou toda a história que ouviu na cozinha após o almoço de domingo. Em frente ao espelho, com os olhos marejados, Marta viu os traços do padrinho. Os olhos grandes, as orelhas pequenas... A mãe negou. Tudo fofoca, gente desocupada, invejosa e mal amada.

Se o assunto era proibido, poderia calar sua mente? Marta virou adolescente sem que o pai a olhasse nos olhos. Sentia culpa por nascer. A saliva queimava a garganta ao descer, empurrando o choro pra dentro de si. O choro, a raiva e as perguntas. Ensurdecia diante dos gritos da mãe que, enfurecida pelas brigas eventuais, chamava o pai de homem oco. Depois ajoelhava, pedia perdão e ele cedia. 

O peso da tristeza era medido em toneladas, não havia guindaste forte o bastante para tira-la da cama. Perdeu dois anos de escola, a mãe dizia que estava doente. Caxumba, catapora, cistite e conjuntivite. Desejava intimamente que a mãe chorasse sangue, carregasse o peso de sua dor e assinasse a confissão. Ao invés disso, aprendeu a conviver com o silêncio. Em tempos remotos, sem exames de DNA, atravessou a vida sem saber. 

Ano após ano, a madrinha adoeceu. Na visita, já não havia olhar cerrado, só compaixão. O padrinho, com os cabelos grisalhos, acariciou sua cabeça como fazia quando criança. Falou sem dizer. Pouco tempo depois ele se foi, a madrinha o seguiu e a mãe não demorou. No leito de morte do pai, pediu licença aos presentes, para a despedida. Munida de uma tesoura, arrancou a unha da mão que antes apertava seu queixo e agora um crucifixo. Por ser, enfim, a única capaz de se ferir, deixaria de viver morta para renascer.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Sem título e sem desfecho


Os pés de Julia estão atados ao chão de tal maneira que não lhe permitem sonhar. No plano térreo do racional, todo devaneio é cortado pela raiz ou pisoteado pelos pés que a sustentam, mas não levam a nenhum lugar. A menina foi acometida por uma doença grave que alterou por completo o percurso de sua vida: a desilusão.

Traída pelo amor, que por anos manteve o disfarce de aliado, descobriu-se obrigada a libertar quem gostaria de prender. O querer estar perto deve ser natural ao coração. O seu estava repleto, dificultando a interpretação das mensagens do outro ao mostrar que o dele não. Não mais. Entre tantas opções sinceras, escolheu a mais dolorosa de partir.

Transformada em rocha, seu olhar petrificou. Não enxerga nada que valha o risco de caminhar fora da fortaleza que criou. Recebe olhares e os ignora. Das pessoas interessantes que cruzam seu caminho, realça os defeitos. Mês passado encantou-se com o sorriso de um homem no mercado. Na dúvida, não sorriu de volta. Desde então vai sempre ao mesmo local, na esperança de reencontra-lo. Talvez nunca mais.

Julia não se permite viver, por acreditar que já conhece o desfecho da história sem esta ao menos começar. Menina Julia, o desfecho não existe. Os momentos sim. E a beleza em alguns deles vale por mil desfechos ruins.