terça-feira, 15 de julho de 2014

A veterinária da Neneca

Depois que adotei minha vira-lata fiquei com vontade de ser veterinária. A que cuida dela está sempre com marcas de patinhas nas calças, jogando os cabelos de isca pra brincar e rindo à toa. Que legal, é isso que eu quero. Mas precisa enfiar o termômetro no fiofó, né? Várias vezes por dia, aliás. A Neneca é filhote e já fica puta, imagina enfiar em um pit bull. Deixa pra lá.

No Mestrado eu me empolguei com Jung e lembrei de uma palestra que assisti no curso de Psicologia da PUC, tentando decidir o que prestar no vestibular. Não faço a mínima ideia de qual era o tema. Com 17 anos, a cabeça - e tudo o mais – fervendo, fica difícil se concentrar em uma senhora cochichando conceitos dogmáticos. Hoje eu poderia estar em um consultório com decoração rústica e uma orquídea amarela na mesinha de canto, mas risquei Psicologia da lista porque o campus era na PQP e a senhorinha um porre. Questão de critérios.

Uma menina do cursinho bem que tentou me ajudar. Disse que conheceu um cara na praia, o Américo. Américo tinha dreads no cabelo e estudava Naturologia. Isso, Naturologia. Nós ainda não andávamos com o Google no bolso, então precisei de um Guia do Estudante para descobrir que o naturólogo utiliza terapias naturais na prevenção e no tratamento de doenças, como plantas medicinais, essências de flores, cores e luzes, massagens, alimentação saudável e atividades físicas. Ao explicar minha nova escolha para os amigos ouvia coros de “é a sua cara” e “tudo a ver”. Estilo “tell me more”, no Grease. Não durei nem um mês.

Você, pentelhinho sortudo que sempre soube o que queria ser quando crescer, provavelmente não vai me entender. Mas saiba que eu também tive meus sonhos de infância. Uma vez eu encontrei um livro amarelado que ensinava a identificar estrelas, então vaguei entre astrônoma e astronauta por meses. E notei as risadinhas, viu? Obrigada, adultos. Após as primeiras histórias escorregarem por folhas sulfite (eu não gostava de linhas), decidi ser escritora. Cadê a opção fácil? É difícil ter coragem quando a sociedade lhe dá banhos de cimento.

Escolher o que ser aos 17 é pura sacanagem. Não sei vocês, mas eu era só uma goiaba perdida no pomar. Depois da redução da maioridade penal é capaz de quererem mudar o vestibular para a sexta-série (ou sétimo ano do Ensino Fundamental, se preferir). Ontem eu ouvi uma mulher lamentar a falta de empenho do filho que, aos 10 anos, não consegue estudar por mais de uma hora e meia seguida. “Se ele prestasse um vestibular de Medicina hoje não teria condições de passar”, choramingou. Minha senhora, deixe esse menino brincar, pelo amor de Deus. Escolinhas, usem seus outdoors sobre aprovação no ENEM como termômetro canino. 

Eu voto em três anos de matérias optativas antes da escolha por uma área específica, bem como na valorização do trabalho manual, técnico e artístico. Chega de apressar e venerar o pacote “dinheiro, carreira e sucesso”. Quem sabe assim teríamos mais médicos atenciosos e humanos por aí, como a veterinária da Neneca.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Minha casa

Estragaram a minha casa. Não a casa onde durmo, tomo banho, como, vivo.  Falo de outra, no caminho desta.

Até então, esperar naquele “pare” após o McDonald’s não era um martírio, pois ela estava lá. Pilares de concreto sustentando os traços retos, extremidades de uma das maiores sacadas que já vi. As portas de vidro revelavam seu precioso segredo: uma cachoeira de luz que descia da claraboia central. Quanta vida.

A primeira vez que li “vende-se” no portão fui pega por um suspiro. Quem seria o sortudo a percorrer seus cômodos? Eu colocaria uma mesa redonda na varanda, que é para o papo viajar além do relógio. Café fresco, jardim verdinho, portas escancaradas.

Pensei em usar um chapéu e óculos com bigode, fingindo interesse em comprá-la, só para conhecê-la de perto, de dentro. Mas não o fiz. Até que a placa sumiu.

No último domingo a paisagem mudou. Não por que escolhi outra rua ou um semáforo ao invés do “pare”. Olhei para a direita, nenhum carro. Para a esquerda, livre. Mas, prestes a acelerar novamente, o tônus muscular do meu rosto se foi. Com o queixo pendurado, demorei mais do que devia. Deformaram minha casa dos sonhos. Da noite para o dia.

A sacada já não existe mais. Fechada com concreto, deu lugar para cubículos comerciais. Já não é possível ver a claraboia, entre caçambas e entulhos. Sua peculiaridade foi transformada em uma grande caixa de sapatos. Quem a comprou não a amava tanto quanto eu. Fez um bom negócio.

Só pra te contar, o caminho não é o mesmo sem você. Corro o risco de me acidentar, mas atravesso rápido, pois dói olhar no que te transformaram. Logo você, parte do meu dia. Agora é como todas as outras na cidade. Tijolos, marcas, aluguéis. 

Assim como ninguém quer se lembrar de um ente querido estático no caixão, prefiro guarda-la viva em minha memória. Escolho outra rua, perco horas no trânsito, mas fujo de você. Antes que te instalem um letreiro gigante, com slogan tão clichê, que me faça esquecer.