terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Rebeca e seu "Peido"


Não satisfeito com a última garfada do macarrão, Pedro lambeu todo o molho do prato, como um cachorro vira-lata. “Tem molho no seu nariz, no seu queixo e na sua orelha direita”, alertou Rebeca, ao entrar no quarto.

Rebeca e Pedro namoram há sete meses e, talvez pelo fato de ela dormir no apartamento dele na maior parte das noites, a sensação é de que se conhecem a vida inteira.

Ela se ajoelhou na cama ao lado de Pedro e lambeu o molho que restava em seu rosto. O prato foi colocado com os demais, embaixo da cama.

Toda vez que vai ao banheiro, não importa qual seja a finalidade, Pedro não fecha a porta. Certa manhã Rebeca entrou para entregar-lhe uma xícara de café e admitiu que o achava lindo e frágil sentado no vaso.

Campeonato de gases, limpeza do nariz alheio, comida com data de validade vencida, uma escova de dentes para duas bocas, uma toalha para dois corpos. Assim os pequenos momentos da rotina em comum são construídos, sem planejamento ou gasto de energia ao depositar atenção aos detalhes. Nem ao menos àqueles considerados higiênicos.

Nos 27,72 m² que dividem com mais regularidade do que o avaliado como normal, o uniforme é calcinha e camiseta furada para ela, cueca sem elástico para ele. Tentaram calças de moletom em uma noite fria, mas preferiram dividir um garrafão de vinho barato.

Aos olhos dos familiares e amigos, os costumes do casal são classificados em uma escala que vai de peculiar a repugnante. Depende do gosto do cliente. Veja bem, não se importar é um exercício diário. Rebeca não tem tempo para ouvir suas amigas apelidarem Pedro de “Peido” por que está feliz demais. Pedro, por sua vez, não compra um pente por que Rebeca elogia seu cabelo bagunçado. A falta de interesse pela opinião alheia é o ingrediente principal de um amor diferente e, por que não, levemente malcheiroso. Mas essa é só a minha opinião.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Sophie e Marvin dos Titãs


Sentada sozinha naquele restaurante, rodeada de toalhas brancas e som de talheres batendo, mergulhou no cardápio e, após fazer a sua escolha com calma, notou os olhares. Casais, grupos de amigos e famílias a observavam carregando a sombra da aflição em seus olhos. Era noite de sexta-feira e a sua única companhia naquele restaurante caro era um livro. E daí? Se estivesse em um café em Paris seria chique.

Até os amigos mais antigos já desistiram de convidá-la para seus programas e momentos de perdição. Não apenas pelos “nãos” recebidos, mas por sentirem que sua presença era semelhante à de uma mãe ou tia, sempre pedindo que tenham cuidado, puxem os freios e eliminem o perigo da espontaneidade na madrugada.

Sophie nasceu há apenas 23 anos, mas, ao se deitar na cama, faz a conta nos dedos dos pés e das mãos para ter certeza disso. Sente-se como se tivesse 50. As lembranças da infância e da liberdade foram engolidas pelo dia em que se tornou adulta, aos 15 anos, com a morte de seu pai. Não teve tempo de chorar nem questionar, apenas assinou a papelada, foi emancipada, entrou na fila do banco, pesquisou o valor do imóvel, consolou a mãe, comparou o valor do feijão no mercado da esquina com o do armazém e tentou correr para alcançar a vida que lhe fugia dia após dia.

Tem certeza de que parece um quadro torto ao lado das garotas aparentemente semelhantes. A vergonha ainda toma conta de si ao ser obrigada a admitir que prefere ficar sozinha com uma caneca (caneca, não xícara) de café preto e um livro, do que estar em um cubículo escuro com som alto e pessoas desconhecidas tropeçando em seus pés.

Ao voltar pra casa se depara com a mãe adormecida no sofá e a televisão ligada. Desliga o aparelho, cobre-a com um cobertor perfumado, lava a louça, checa se todas as janelas e portas estão fechadas, coloca a pilha de contas a pagar na bolsa e se senta sozinha no escuro. Secretamente, deseja ter tempo para pensar só em si mesma. Adoraria conhecer outras cidades, outras culturas, mas não pode deixar a mãe sozinha. Adoraria arriscar trabalhar com algo que gosta, mas não pode dispensar o pequeno salário que recebe no fim do mês e sustenta essa casa. Então, logo em seguida, sente-se culpada e egoísta por pensar em si. Adormece e sonha com o dia em que caiu da balança no parquinho e, na velocidade de uma piscada, foi socorrida por três pessoas diferentes. Abraça o próprio corpo, acalentada pela posição de protegida, ao invés do frio que há no cargo de proteção.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um em um milhão


"Vocês conhecem alguém que ama o que faz e ainda recebe um bom salário por isso? Pera lá, porra... Não estou dizendo um ótimo salário. Um bom salário, só isso. Alguém?!", quase gritou André, com os cotovelos apoiados na mesa de plástico de um boteco e as mãos abertas, viradas para cima. Os amigos calados. Ele tenta convencê-los de que a decisão de desistir do sonho de ser músico para cursar Faculdade de Administração é questão de sobrevivência e bom senso.

André ganhou seu primeiro violão aos três anos de idade. Era de plástico como a mesa daquele bar, mas tinha som. Aquele som embalou seus devaneios noturnos, diurnos e diários durante a infância, adolescência e juventude. Queria viver de música.

Todos os amigos admiram a sua habilidade com o instrumento. O braço do violão parece uma extensão do seu próprio corpo. São íntimos, trocam confidências, encantam e envolvem. Feitos um para o outro.

"Porra, viver de música é como viver de futebol. Um em um milhão! Vocês conhecem alguém que desde moleque dizia que queria ser jogador e conseguiu? Alguém?!", argumentou, apesar do silêncio que ainda pairava na mesa.

A verdade é que, apesar da paixão e coleção de elogios, não acredita que possa ser este um, entre tantos sonhadores disputando uma vaga. Nunca conseguiu assumir, com todas as letras e em voz alta, aquilo o que realmente gostaria de ser quando crescer. Tem medo. Medo de fracassar, de morrer de fome, de se arrepender do tempo perdido. Entra em um quarto escuro e encolhe-se, bebendo de canudo o receio de investir anos e dedilhados em algo que parece impossível tocar.

O vestibular é amanhã. Os livros, anotações, canetas e pastas estão ao seu redor, no chão do quarto. Estão todos encarando-o enquanto ele, de olhos fechados, faz ecoar pela casa o som do sonho, convidando a coragem para entrar.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Veneno de Sarita


Sarita estava radiante. Brilho no olhar, brilho nos dentes, brilho nos cabelos e brilho nas unhas. De emprego novo, ganhando bem para fazer o que ama, além de namorado igualmente novo, com corpo e alma recheados de satisfação.

Finalmente, após anos mudando a cor dos cabelos, encontrou a que combinava perfeitamente com seu rosto. Esse fato aconteceu na mesma semana da entrevista do tal emprego, bem como da primeira transa com o atual namorado. Sem mais nem menos, sua vida estava o que se pode chamar de perfeita.

Ao se dar conta de como tudo havia se encaixado, foi subitamente tomada pelo medo. Medo do momento em que o jogo viraria, que perderia todas as peças. Preocupada e esperando a reviravolta que, a seu ver, acontece com qualquer um que tem uma vida de perfeição, imaginava um acidente de carro toda vez que dirigia sem companhia. Assim que o namorado ligava o chuveiro, fantasiava que, se olhasse seu celular, encontraria uma troca de mensagens em que ele dizia à ex que nunca a esqueceu. Toda segunda-feira, ao atravessar a porta do escritório, ouvia, dentro de sua cabeça, um discurso de demissão. 

Seu rosto mudou, transformando-a em uma ameixa viva. O olhar se tornou desconfiado, qualquer um poderia ser o responsável por acabar com a sua felicidade. Refém de si mesma, trancafiou-se em uma concha de desespero, afastando qualquer pequeno sinal de alegria por medo do que viria em seguida.

Prefere a tristeza, o estágio de sua adolescência. A esperança de que o melhor ainda está por vir. A vontade de correr atrás e a admirável coragem que tanto foi elogiada por amigos e parentes. Não isso. Com a conquista, o que resta? A ambição, o querer sempre mais? Sarita pede para o tempo voltar atrás, para a mesa de bar e lamentações. O azar, as dúvidas. A tristeza é o veneno que a deixa secretamente feliz.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

As libras de Társio


Társio nunca precisou se preocupar com ninguém, tão pouco com opiniões e desejos alheios. Na escola costumava se distrair desenhando, sozinho. Durante a adolescência tomou gosto por tocar violão e assistir filmes de ficção, sozinho. Adulto, escolheu o cigarro e a mesa de bar. Sim, sozinho.

Nunca teve amizades que durassem mais de algumas horas banhadas em álcool, acreditava que as pessoas não passavam de pedaços de carne ambulantes que, por um acaso, falam. Tédio. Desnecessário.

A única coisa que lhe dava forças para trabalhar todos os dias era o desejo de viajar. Preferia conhecer os prédios, ruas, postes e objetos do que qualquer ser vivo. Após dois anos vivendo de forma robótica, guardar dinheiro foi fácil. Seus gastos se davam, basicamente, com cigarro, cerveja, pão e queijo.

Assim que pousou em Londres começou a busca pelo contato de uma prostituta. Apenas colocou a mochila nas costas e perambulou pelas ruas, com o único objetivo de fazer sexo mecânico com uma desconhecida. Isso não se tratava de uma rebeldia ou ato de libertação de mochileiro, mas sim um costume, sempre que o lado animal e humano de Társio superava seu controle racional e matemático. Encontrava uma prostituta barata e silenciosa, determinava sua velha conhecida posição que fazia com que atingisse o orgasmo com a rapidez de uma bala, pagava e cochilava nos minutos restantes que sobravam de crédito. Fim.

Era noite e a cidade tinha cara de festa, então suspeitou que não encontraria grandes dificuldades em atingir seu objetivo. Entrou em um pub pequeno e mal cheiroso, até mesmo para ele, que sempre fedia tabaco e ralo de pia.

Já não enxergava bem no momento em que viu aquela mulher, extremamente pálida e com dentes cor de asfalto, cair no chão ao tentar se debruçar em um grupo de homens, que riram com a queda. Os cabelos curtos estavam molhados pela mesma bebida colorida que manchara seu vestido. Com um salto quebrado, ela não tentou se levantar, apenas pediu mais uma bebida, apoiou as costas na parede e esticou as pernas para frente. Társio imaginou o quanto ela cobraria, sendo tão feia e suja. Tentou reverter o valor em libras enquanto puxava-a pelo braço e a levava embora daquele lugar.

Ela não falava inglês. Imaginou que se tratava de uma estudante de qualquer país vizinho, tanto faz. Perguntou se o pagamento poderia ser realizado em libras, ela fez sinal afirmativo com a cabeça.

Depois disso, lembra de flashes da busca por um beco sem saída, albergue ou qualquer coisa similar. Cama beliche, vozes, risadas, cigarros. Risadas ou gritos? Sei lá. Ao acordar e projetar sua mão direita para coçar as partes baixas, encontrou algumas notas dentro da cueca. 20 libras no total. Não se lembrava de ter guardado nada ali, nem de ter dado dinheiro àquela mulher.

Sentiu vontade de ir embora. Enquanto contava moedas para pagar o pernoite, foi interrompido pelo rapaz que fechava sua conta na recepção, que perguntou se ele gostaria de deixar seu telefone para contato. Társio respondeu, friamente, que não tinha um número em Londres. "Sem problemas! Você costuma agendar os programas por e-mail? Helena me contou sobre seu maravilhoso trabalho e eu gostaria de saber se você está livre esta noite".

Helena estava satisfeita por ter transado com alguém tão barato na noite anterior. Se lembrou da data em que, como comemoração ao atingir a maioridade, seu pai a levou até a zona da cidade pela primeira vez e deixou que escolhesse o homem que quisesse alugar aquela noite.

Társio lembrava um vagabundo que ela comeu na França, ou foi aquele da Bélgica? Tanto faz. Mandou um e-mail para o pai contando que já havia atingido o número de 18 transas durante sua viagem. Poucos minutos depois recebeu a resposta. "Essa é a minha garota! Pegadora. Aproveite, mas não se esqueça de ficar de olho no seu irmão, que está muito saidinho para o meu gosto. Não deixe nenhuma marmanja folgada encostar nele, ok? Um beijo, papai. PS: lembre-se de usar as camisinhas que coloquei no bolso da sua mochila!"

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Marcos malabares

Mais um nome trocado na agenda do celular de Marcos. Daniela virou Jão. João não, Jão é mais real, sugere intimidade. Decisão repetitiva, facilmente comprovada por Zé, Dema, Gui, Gordo, Carlinhos e Neto. “Amigos” que servem de escudo para esconder seu estilo de vida. Praticamente uma profissão, tamanha concentração e empenho que demanda.
Um analista poderia alegar que se espelha no pai e procura afirmação enquanto transborda insegurança. No escopo de seu árduo trabalho, Marcos não permite ser esquecido, pelo bem ou pelo mal. Causa fúria ou conforto, asco ou paixão. Mas é lembrado.
Sim, atrai muitas mulheres diferentes. Burras, boas, bravas, tímidas, taradas e tentadas. Brinco sem seu par na mesa, elástico de cabelo na torneira do chuveiro, celular no modo silencioso. O que surpreende não é a diversidade (e quantidade) que afeta apesar do jeito rude e português falho, mas sim a habilidade de malabarista que desenvolveu, ao longo dos anos, para conseguir manter Gina nesse cenário.

Já se esgotaram as surpresas românticas como pedido de desculpas, as justificativas não são capazes de enganar uma formiga. Mas Gina ainda está lá. Convence-se de que o brinco é seu, que precisava mesmo de um elástico e que o celular só vibra para não atrapalhá-los.

Um analista poderia alegar que se espelha na mãe e procura afirmação enquanto transborda insegurança. Um fã de novela mexicana poderia chamar de amor incondicional. Gina atualmente lê "Cinquenta Tons de Cinza" e torce para que Stephenie Meyer não pare em "Amanhecer".

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Antes de Portugal


Josefina adora seu nome. Uma homenagem aos avós que nunca conheceu, José e Marina, não consegue imaginar outro nome tão bonito quanto o seu. Por outro lado, se tortura por que ninguém, nem ao menos sua mãe, já lhe disse que ela é linda. “Josefina é tão engraçadinha”, “Josefina é charmosa, né?”. Nunca contou a ninguém, mas, ao se analisar em frente ao espelho enquanto escova os dentes pela manhã, se acha tão bonita... Mesmo com pasta no queixo.  

Cansada de coisa nenhuma, plantou coragem em um algodão e decidiu viajar sozinha. Portugal, para não correr o risco de não entender o idioma. Em contato com uma tia que mora no país, para não correr o risco de ficar sem teto.

Malas prontas, mapas e guias. Embarca no dia seguinte, uma terça-feira. Como toda segunda, foi à padaria da esquina e pediu o café com leite de sempre. Percebeu que a “sua” mesa estava ocupada. Conheceu Danilo, que de tanto receber seus olhares de agulha, cedeu o lugar. Esqueceu as malas, a passagem e a tia, ora pois. 

Meio Eduardo e Mônica, Danilo era o oposto. Em cinco minutos a convenceu a experimentar o café de caramelo, ficar descalça em público e retomar as aulas de balé. Em plena segunda-feira, perdeu o relógio.

Ele quase rasgou a passagem ao receber a notícia. Mas o pagamento já foi quitado. A tia avisada. O estoque de absorventes comprado. Seis planilhas no Excel para seis meses de viagem. E, no fim do dia, já ajudava-a a fechar a última mala, até ofereceu carona para o aeroporto. Josefina acabou por tentar se convencer de que não era para acontecer. Melhor isso do que sofrer. Chegou a queimar o céu da boca com o café de caramelo e agora lamenta a perda de alguém que nunca teve, nem ao menos conheceu.

Ela não se revoltou, raspou o cabelo, fez tatuagens e participou de uma orgia. Mas desejou cada uma dessas coisas em segredo. Nas noites em que o passatempo é lamentar, lembra de Danilo. Arrepende-se de não ter feito nada e nada faz sobre isso. Acorda, faz uma caminhada, come mamão com granola, vai para o trabalho, volta para casa, assiste televisão e dorme. Mais um dia riscado do calendário.

Planeja surtar. Só Josefina seria capaz de planejar um surto. Assim que acontecer, dia 17 de janeiro de acordo com o gráfico, vai mandar o mundo à merda, aparecer na casa de Danilo e convidá-lo para limpar a pasta de dente do seu queixo pela manhã. Mas não hoje. Hoje está ventando.


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Ana aos 28


Somente no momento em que repousou um bichinho de pelúcia dentro da última caixa de papelão Ana se deu conta de que nem sabe por que, de fato, deixará a casa dos pais. Olhou ao redor e sentiu vontade de ouvir todos os CDs antigos, reler os livros infantis e abraçar as lembranças.

Após 28 anos de filosofia, questionamento e inconsequência, tentando descobrir quem realmente é e qual seu objetivo na vida, não encontrou nenhuma resposta que durasse mais de 24 horas. Repentinamente, foi tomada pelo medo de nunca ter realizado nada que proporcionasse o bem, nada que a impulsionasse até o lugar em que queria chegar, afinal, como chegar sem o endereço? Assim como Alice em seu país das maravilhas, podia ouvir o Gato de Cheshire a lhe responder: "nesse caso, pouco importa o caminho que sigas"...

Enquanto decidia se levava algumas fotos ou ateava fogo nas mesmas, avaliou atitudes das quais ora se envergonha, ora se orgulha. Existe uma Ana descabelada e impulsiva que bate à porta após algumas doses de álcool e não se dá muito bem com a Ana cara de terça-feira, ainda um pouco descabelada, porém preocupada com o trabalho e com o sentimento alheio. A primeira não pensa em nada que não faça parte do segundo vivido no tempo presente. Isso prejudica a terça-feira, mas tem o poder de transformar banalidades em momentos saborosos e inesquecíveis.

“Ana terça-feira” estudou Psicologia, até descobrir que sabia pintar quadros a óleo e mudar para Biologia, por que a tinta acabou. A outra Ana só quer saber de música, gente divertida, um bom vinho e um papo sobre a vida. A Biologia que se foda.

Se Ana não pensasse tanto, acharia normal a quantidade de variáveis e mudanças bruscas pelas quais passa. Se esbalda na espontaneidade, mas sofre na terça. Depois se sente culpada pelo desejo de voltar... Não sabe quem é, o que quer, para onde vai, de onde veio, muito menos aonde quer chegar. Não tem certeza se sente prazer por isso ou se quer se matar. Não consegue escolher entre pudim ou papaia para o jantar. Em plena terça-feira decidiu tomar uma decisão. Ligou o fusca verde, colocou as caixas no banco traseiro, o som no último e se permitiu não questionar mais.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Puta que pariu, Augustino!

Muitas pessoas evitam ao máximo falar palavrões. Ao bater com o dedinho do pé na quina da cama se contorcem, mordem o lábio e, quando dá tempo de pensar, soltam um “poxa vida”, para não correrem o risco de se acostumar ao desabafo libertador que só uma palavra pesada proporciona.

Augustino sempre foi um homem muito bravo, fã de palavrões sujos. Invocava com as filhas quando essas, ainda jovens, queriam sair para namorar, “tudo vagabunda”. Reclamava com a mulher que não preparou seu jantar da maneira ideal, “vaca mole e folgada”. Achava que ninguém seria capaz de fazer algo tão bem feito quanto ele mesmo, por isso sempre se colocava a frente e agia. Até completar 68 anos de idade ainda cortava a grama do próprio quintal, já que o jardineiro era um “filho da puta” incompetente. Pintava as paredes porque, aparentemente, o pintor era um “daltônico viado”.

Em um desses acessos de raiva, Augustino subiu no telhado de sua casa para mostrar ao “merda do encanador” que a origem do vazamento estava na caixa d’água. Enquanto gritava com o rapaz que o observava lá de baixo e tentava acender seu cigarro ao mesmo tempo, escorregou.

- Puta que pariuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!

Toda a vizinhança pôde ouvir no volume máximo.

A família, apreensiva, não sabia quais consequências Augustino sofreria ao acordar, na UTI, sem uma parte do cérebro. Visualmente, a cabeça ficara um pouco torta, faltando um pedaço significativo na lateral. Mas ninguém, nem ao menos um “merda” de um médico, sabia informar com precisão o quanto o acidente afetaria a sua vida.

Na manhã fria em que ele acordou, a mulher e as filhas estavam na sala de espera do hospital. Ao notar que abrira os olhos, a enfermeira saiu correndo, pedindo que a família viesse com urgência ao quarto.

Cercados de olhares, Augustino checou se os braços e pernas estavam funcionando. Abriu os lábios lentamente e, sem se dar conta da atmosfera de expectativa que envolvia aquele quarto, falou, visivelmente aliviado:

- Puta que pariu!

Desde então, seu extenso vocabulário reduziu-se a essa única frase.  Para festejar é “puta que pariu”. Reclamar, “puta que pariu”. Se emocionar, “puta que pariu”. No bairro, já é conhecido. Na padaria, supermercado e banco, todos estão habituados a, logo pela manhã, o verem cruzar a porta e cumprimentar a todos com naturalidade.

- Puta que pariu!

Continua bravo. Não se conforma que a faxineira não entenda suas detalhadas instruções na base do “puta que pariu, puta que pariu, puuuuuuta que pariu...”.

Não se sabe se, dentro de sua cabeça, existe algo além da frase. A família, com poucos recursos, desistiu de buscar uma confirmação médica para saber se o “puta que pariu” ficou como última lembrança antes da queda. A meu ver, dentro de uma rica coleção de palavrões, exausto por tantos anos criativos, escolheu o melhor para ser seu fiel companheiro. “Puta que pariu” expressa mais do que a Fernanda Montenegro em um palco de teatro. É pra saúde, riqueza, pobreza, alegria e doença. Puta que pariu!

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Os barcos estão órfãos

Desde que saíra de Americana para morar no Guarujá, a pele de Seu Wladimir ficara ainda mais morena. Um belo contraste com os cabelos grisalhos. Agrada-lhe fazer esporádicas caminhadas matinais para cuidar da saúde, e beber um whiskynho noturno, que ninguém é de ferro.

Férias e feriado prolongado são sinônimos de casa cheia. A filha e as netas são presenças garantidas, que confortam seu coração com carinho cada vez que ouve o apelido, ‘Dido’. Apelido que o filho transmitiu ao seu primeiro neto homem, que acha graça na risada rouca do avô da praia.

Quando tudo se acalma, a casa é embalada pelo silêncio e o dia se torna apenas mais um, Seu Wladimir se senta na sacada de seu apartamento e conta, um por um, os grandes navios que passam enfileirados no horizonte. Envolveu-se tanto por esse momento solitário e particular, que estudou as rotas e sabe o destino de cada um deles, a hora exata que passam e de onde vieram. Para não se esquecer de nenhum, desenhou uma tabela detalhada no computador. Como amigos íntimos, chega a cumprimentar, saudosista, um navio que não via há muito tempo.

Dona Marli, sua fiel e agitada companheira, não era a única que tinha dificuldade em entender como ele conseguia ficar lá fora por tantas horas. “Ao invés de olhar os barcos de longe, vamos logo embarcar em um, Dido! Que perda de tempo, homem...”, dizia. Seu Wladimir planejava fazer essa viagem. Algo fez com que deixasse pra depois...

A cadeira que o acomodava na varanda continua lá. A tabela, o binóculo e o copo de whisky, já incolor pelo gelo derretido, também. O chapéu panamá, que protegia seu rosto do sol com estilo, achou estranho que até agora não saiu do armário. Tudo está intacto, sem Seu Wladimir. Essa noite o desfile de barcos passará despercebido pela praia de Pitangueiras, transportando pessoas de um ponto ao outro, sem razão poética de ser. 

terça-feira, 3 de abril de 2012

Maria da vala

Existe uma coisa, que pode ser grande ou pequena, sã ou insana, entrega ou razão, que divide em dois planos o imaginário e a realidade. Talvez o maior sinal de que o imaginário começa a avançar o território da realidade, seja a quantidade excessiva de momentos perdidos, planejando, sonhando ou desejando outros, que estão no imaginário. Que prazer visualizar momentos perfeitos, atitudes incríveis e sensações inesquecíveis. Mas sensação é algo que se visualiza ou se sente?

Maria via em Mauro o kit embalado em conservante de todas as qualidades e interesses que ela respeitava. Não o conhecia, mas sabia quais músicas, filmes e futilidades o faziam ser o que é. Nunca ficara mais do que cinco minutos no mesmo ambiente que ele, mas reconheceria sua voz mesmo que no sussurro mais distante. Perdeu as contas da quantidade de vezes que se desligou da mesa do bar, se esqueceu de piscar e imaginou como alguém que acabara de entrar andava de um jeito parecido com o de Mauro.

Sempre na arquibancada da torcida pelo acaso, nunca encontrou Mauro sem querer. Esperava, planejava e, no fim, só mais uma noite na vala entre os dois planos. Nem aqui, nem acolá.

De tanto esperar, sem sair do lugar nem mudar de opinião, enrijeceu. Por algum tempo (não se sabe quanto), não houve guincho nesse mundo que tirasse Maria da vala. O plano imaginário já não fazia sentido e na realidade não ouvia a voz de Mauro, só o lia.

O amor platônico é o amor perfeito. Inabalável, incondicional e inatingível. Um passo a frente, a cara pra bater, põe em risco toda essa culminância. Ao ansiar por Mauro no plano da imaginação, Maria nunca foi abandonada, não se decepcionou e muito menos se arrependeu. Envolvida pelo encanto de palavras que não foram ouvidas, toques que não sentiu e bebidas não compartilhadas, Maria não existiu e Mauro continua em conserva, protegido de si mesmo.

sábado, 10 de março de 2012

Um corpo, um sofá

Que triste fim, esperar a morte chegar. Terça ou sábado, tanto faz. 

Um dia, sábado foi especial. Todas as filhas reunidas, música alta, cheiro de churrasco e sal. Os dentes mal cabiam na boca, de tanto que ria. Toca varrer o quintal, limpar o neto e ouvir os lamentos do genro. 

Todos queriam ficar por perto. Era importante, apresentava solução pra tudo, se interessava pela vida do outro, era boa companhia. 

Hoje é só sofá. O som da voz vem para alertar sobre a dor nas pernas e o desejo de ir embora. Sem filhas e música, os dentes saíram da boca direto para o copo d’água. Nem as lembranças lhe pertencem mais, não sabe onde encontrá-las.

A casa não é sua. Nem a cama, nem a mão que ajuda durante o banho.  De som, só o da televisão. Companheira que justifica seu silêncio.

Terça ou sábado? Realmente, tanto faz. Não quer agir. Deixa como está, fica pra próxima. A vida já foi. O corpo que se perdeu e ficou aqui, grudado no sofá.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Calendário de um dia só

Que satisfação sentiu ao acordar e se dar conta de que não se tratava de uma manhã qualquer. Era uma manhã do dia 22 de janeiro. Entre tantas datas esquecidas, aniversários sem desejar felicitações e luto sem lembranças, dia 22 de janeiro brilha no calendário de Madruga. Isso porque, até três anos atrás, só atingia o brilho com ajuda química.

E que brilho! A primeira vez que Marcelo Ugarte da Silveira experimentou ecstasy, aos 19 anos, teve certeza de que não havia no mundo sensação igual aquela. Na rave em que estava com dois amigos, as mulheres formavam um exército de Gisele Bündchen’s, todos os presentes eram amigos de infância, o lugar lembrava um quadro que retrata o paraíso e, além de tudo, descobriu que era o Michael Jackson da música eletrônica. Confiante e transbordando alegria, sentia cada rajada de vento que tocava seu braço enquanto sorria, dançava e conversava sobre tudo, da criação do mundo ao mercado de venda de pamonhas de Piracicaba.

Preferia o ecstasy que a maconha. Isso porque o mesmo galanteador das raves se encolhia como um tatu-bola quando fumava. Conforme o uso aumentava, de brinde ganhava mais uma dose de timidez. “Eu comecei a reparar que perdia, vamos dizer, o meu “xaveco”. A maconha, de certa forma, substituía as mulheres pra mim. Isso me tira do sério até hoje. Como trocava mulheres por maconha?”, questiona Madruga.

Foi no ano de 2002 que a história realmente começou a mudar. Já havia experimentado maconha, ácido e ecstasy. Que diferença faria acrescentar mais uma experiência? De acordo com Marcelo, quando a cocaína tocou a campainha parecia inocente, mas foi a responsável pelo enterro do brilho. “Caí em um buraco. Fui interromper o uso só após seis anos, quando nasceu a consciência de que outras pessoas conseguiam levá-la numa boa, mas eu não”, conta. Entre madrugadas curtas e tardes sem fim, gastava R$60 por dia em papelotes do pó.

Hoje, a viagem que fez anos passarem como um suspiro foi substituída pela fantasia de uma realidade paralela. Nessa realidade Madruga, que agora está mais para Matutino, é médico. Com a cabeça erguida caminha pelos corredores do hospital, usa linguagem técnica ao explicar por que a senhorinha está com tosse e sabe exatamente o efeito da cocaína, mas nunca a provou. “Penso em como deve ser incrível olhar pra própria pele e saber exatamente como é por dentro”, imagina.

Entre sonhos e arrependimentos, Marcelo conta o apoio dos amigos, trabalha em uma empresa com princípios ecológicos e comemora cada 22 de janeiro como se dele dependesse sua vida.  

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A ternura na barba de Zé Albano

Pés sempre descalços andando pelas folhas secas no chão, “crec, crec, crec”... É a trilha sonora do seu cotidiano. Gosta de usar a mesma roupa até ficar tão enjoado que não pode nem avistá-la por um tempo. A barba grisalha e comprida esconde um rosto comum e histórias nada convencionais. 

José Cordeiro Albano tem 67 anos e há 26 destes sobe e desce a escada de madeira que dá acesso ao seu “quarto” (um mezanino rústico no canto da sala de sua casa) com a habilidade de um gato. A casa, feita de taipa, é repleta de luzes coloridas. Obra daquele quem Zé considera seu Deus, o sol, refletindo nas mais de 50 garrafas dispostas pelo barro nas paredes.

A Comunidade Alternativa Sabiaguaba, fundada por ele, fica na periferia de Fortaleza, bairro Lagoa Redonda. Próxima demais do centro para ser considerada rural (são 17 km), mas distante o suficiente para fugir da agitação. Foi em 1975 que, junto à sua ex-mulher Regina Lima, decidiu que a vida de correria, trânsito e confusão não combina com a vontade de estar perto da natureza, das picadas de muriçoca e do estilo de vida que busca manter.

Sua primeira visita ao planeta do movimento alternativo foi motivada “pelas tripas”. Até os 21 anos sofria com uma prisão de ventre terrível e se alimentava muito mal. Assim, sem acreditar em coincidências, enquanto folheava uma revista velha a fim de se distrair do desconforto da sala de espera de seu dentista, deparou-se com uma matéria sobre os benefícios da fibra na alimentação. “Funcionou como um chamado! Eu não acreditava no que estava lendo”, conta enquanto ri. Hoje, grãos integrais não faltam na pequena bancada de madeira de sua cozinha. 

Caixa de papelão, papel alumínio e plástico. O que pode parecer lixo, para Albano significa forno solar. Após descobrir a maneira ecológica de cozinhar alimentos no site de duas pesquisadoras americanas, ele adaptou o objeto à luz do Ceará, transformando-o em um perfeito girassol. Ainda lembra a primeira experiência, ao cozinhar arroz com lentilha. “Assim que eu abri a tampa da panela fui envolvido por um aroma incrível! Como o forno retém todo o calor do sol, não existe comida tão saborosa e cheirosa quanto a feita no forno solar”.

Entre palestras e oficinas, Zé ensina como construir seu próprio forno e preparar os alimentos, além de hastear a bandeira dos benefícios ao meio ambiente. “Usar um forno solar significa cooperar com a preservação da natureza, reciclando materiais do lixo e usando uma fonte gratuita, renovável, e inesgotável de energia – a energia solar – e, ao mesmo tempo, reduzindo a dependência dos combustíveis fósseis (gás) e dos recursos florestais (lenha e carvão)”, explica.

O cearense é fotógrafo por profissão e educador por escolha. Isso porque, diariamente, os meninos que vivem ao redor de sua terra fazem a festa em sua casa e sua mata. São os Albanitos. Projeto que teve início em 1986, quando seu afilhado Ares foi passar férias com ele e convidou alguns dos garotos para jogar bola no espaço. “Eles nunca mais saíram daqui. Passaram a convidar os primos, amigos, depois os irmãos mais novos... São 24 anos de gerações e mais gerações de Albanitos”, relembra entusiasmado.

Entre alegrias e decepções, os garotos são o que Zé considera sua contribuição para o mundo. Os ensina a tirar fotos, a usar o computador, os acolhe e entrega de bandeja seus tesouros, contidos no acervo de mais de 200 livros e discos de vinil.

Alguns presos, outros bem empregados, muitos perdidos em drogas e até mesmo morando na casa ao lado. Idelbrando Coelho é da primeira geração de Albanitos. A partir dos oito anos de idade dividia seus dias entre o futebol, o violão e o colo de Zé. “Aos 14 já dormia por aqui, e quando me dei conta me sentia como um filho”, conta o atual padeiro e músico. Aprendeu a fazer pão observando o novo pai e ganhou o primeiro violão de uma frequentadora da comunidade.

Mas é a família de sangue que se preocupa com Zé. “Esse homem é muito bom, mas muito mesmo. Tão bom que não vê maldade em ninguém, e esses meninos abusam demais disso”, é o que pensa sua sobrinha, Maria Augusta Albano, com medo de que o tio seja ameaçado pela presença dos jovens. “O problema é que para se dar bem com o Zé é preciso aceitar que para ele são os Albanitos em primeiro lugar, depois o resto. Isso após ter sido roubado inúmeras vezes ao longo desses anos”, diz seu irmão Maurício Albano.

Penso que talvez tenha comprado potes de amor incondicional enlatado. Apesar de não ter a mesma confiança nos meninos que tinha anos atrás, o mentor suporta ter sua soneca da tarde perturbada pelos gritos e brincadeiras que invadem as grandes janelas da casa, na esperança de que consiga contribuir para que encontrem direção.

Enquanto dá liberdade para os Albanitos, deixa livre também a fauna e flora a sua volta. Além do chão enfeitado por folhas secas, divide o lar com um sapo que tem atração especial pelo banheiro, uma galinha que protege seus pintinhos com unhas e bicos e o mato que não para de crescer. “Preservo a vida, em todas suas formas. Se o sapo escolheu ficar por aqui, alguma razão há de ter. Se a folha cai, ela deve ter utilidade para o solo. E quem sou eu para achar que tenho direito de cortar o mato? Se alguém cortasse minha barba sem minha autorização eu não gostaria é nada!”. Assim, Zé Albano é a ponte entre todos os elementos vivendo a sua volta. Sejam estes plantas, bichos ou Albanitos, ternura é a lei.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Quem sou eu e o que é o "Perfil de Alguém"

"Perfil de Alguém" é o segundo filho de uma jovem que se casou com a paixão pelas palavras e o interesse pelas pessoas. Após ter finalizado o trabalho do livro-reportagem Vidas Alternativas, meu projeto de conclusão de curso da Faculdade de Jornalismo, a vontade de escrever só aumentou e continua a latejar diariamente em minha vida.

Sendo assim, esse blog será um espaço dedicado a se conhecer um pouco sobre alguém. Alguém que pode ter se sentado ao seu lado no ônibus ou esperado pela luz verde do semáforo no carro ao lado (enquanto cutucava o nariz), uma existência da qual você nunca se deu conta. Alguém tão alguém quanto você.

Pelo texto abaixo agradeço ao Curso Abril de Jornalismo já que, se não fosse por este, eu nunca me dedicaria a escrever o meu próprio perfil.

Prazer, Marcela!



Um pouco de muito

Em um mundo onde existem médicos, mecânicos e macumbeiros, é muito difícil para uma jovem curiosa de 17 anos escolher apenas uma carreira para acompanhá-la por toda vida. Quando chegou o momento do juízo final, eu estava tão pronta quanto uma banana verde presa ao cacho. A cada semana me imaginava fantasiada de uma profissão diferente. Mas o que seria um jornalista, se não alguém que deve saber da anatomia do corpo humano, da física do automóvel, dos santos do terreiro e de um pouco de tudo o que existe?
 
Aos 11 anos de idade começou a fazer parte da rotina acompanhar minha mãe durante as visitas ao supermercado. Aguardava ansiosamente por aquele bate-bate de carrinhos por um motivo: adorava observar as pessoas como ratos ligeiros entre as prateleiras e imaginar como eram suas vidas quando não estavam ali, escolhendo tomates. “Será que é casada? Mora só? Tem um gato de estimação chamado Téo?”. Inspirada por tantos personagens, escrevia histórias e mais histórias. Hoje, três grandes pastas de plástico protegem o tesouro de uma criança considerada maluca pelos colegas e criativa pela família.
 
É claro que existem situações nas quais não estou escrevendo. São aquelas em que as palavras saem pela boca ao invés de no papel. Esperar que o elevador chegue ao andar selecionado nunca foi sinônimo de sofrimento para mim, que sempre saí dessa situação clichê, repleta de minutos vergonhosos, com um novo amigo. As senhorinhas do ônibus me adoram, garanto.
 
Em meio a tantas dúvidas e questionamentos, a necessidade de ter contato com as pessoas e saber um pouco sobre todas as coisas sempre esteve tão clara para mim quanto a existência do sol e da lua. Irmã mais nova de três advogados, filhos de pai juiz, escolhi cursar Comunicação Social. Na minha vida de heroína com identidade secreta, sou estudante de Direito durante o dia e de Jornalismo à noite.
 
Para tentar me destacar em um mercado de trabalho que conta com pessoas competentes vazando pelas janelas, fazer dois cursos de graduação simultaneamente não pareceu má ideia. “Esses jornalistas escrevem cada besteira quando o assunto é Direito, que burrice, pelo amor de Deus”, uma das frases favoritas do meu pai. Cheguei à conclusão de que cursando Direito não só deixaria de ser a ovelha negra da família como, de brinde, me tornaria uma jornalista que não é insultada pelo próprio pai.
 
Eu tenho milhares de ideias todos os dias, sobre temas diversos. O que fazer com fitas cassetes inúteis, uma ótima receita de sorvete de milho com cobertura de caramelo, como terminar o último parágrafo de um texto que comecei a escrever meses atrás... O único problema é que elas resolvem bater na minha porta em momentos nada convenientes, como quando estou no banheiro, dirigindo ou até mesmo com a boca aberta na cadeira do dentista. Por isso carrego sempre comigo um bloquinho de papel e uma caneta, assim a palma da minha mão esquerda fica livre dos meus rabiscos.
 
Foi em um desses momentos, enquanto esperava minha vez na fila do pão, que decidi que meu Projeto Experimental para conclusão de curso seria um livro-reportagem que contasse histórias de pessoas envolvidas no movimento alternativo, os hippies da atualidade. Até então, não tinha noção de como essa escolha teria efeito sobre o tema desse texto.
 
A oportunidade de conhecer pessoas que vivem em harmonia com a natureza, se preocupam com soluções ecológicas, em manter uma alimentação saudável e propagar o bem, me fez rever todos os meus conceitos. Nesse mesmo contexto, a experiência de viajar por vários cantos do Brasil atrás de entrevistas e personagens, acompanhada do meu inseparável gravador, fez com que eu me sentisse uma jornalista de verdade, com as dificuldades e encantos da profissão.
 
Sendo assim, definir quem sou eu significa responder por que escolhi o jornalismo como profissão. Eu sou um instrumento de apreensão da realidade e, assim como esta, estou sempre em transição.