quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Adeus na tangente


Silêncio. Não por não terem nada a dizer, mas a vontade era outra. Ao levantarem-se do sofá para se despedir, viraram de frente um para o outro. Depois de tanto tempo sem se ver, sabiam que dali pra frente isso só tendia a piorar. A trilha que cada um seguia em paralelo desembocava agora em um cruzamento, prestes a dividi-los em lados opostos. Talvez, dali uns anos, poderiam se esbarrar em uma fila de banco, mas não daquela forma. Não naquele sofá.

Lutando contra sua boca que parecia ter os cantos puxados para baixo por dois fios de nylon, ela controlou os olhos marejados, como se houvessem rolhas capazes de estancar a água. Como era difícil dizer tchau dessa vez. Tchau com gosto salgado de adeus.

Na última vez em que isso aconteceu tinha certeza de que se encontrariam em um momento mais favorável da vida. Um engano. Afastaram-se de passo em passo e, agora, nessa pequena tangente, toda possibilidade de alteração de rota se desfazia.

Puxou-o pra perto, impulsiva que é, e envolveu os braços em seu pescoço. Equilibrando-se na ponta dos pés, repousou a cabeça em seu ombro. “Blue Jeans. Você ainda usa esse perfume... Esse cheiro é tão seu”, disse baixo, com medo de ser ouvida. Ele apertou sua cintura com a força de uma jiboia em ataque de constrição. Queria sufocá-la e prendê-la como não fez desde que se conheceram.

Ali permaneceram nos minutos seguintes, em um teste para ver quem resistiria primeiro. “Vá embora logo, sério. Se você falar qualquer coisa eu vou te beijar”, ele avisou, libertando-a. Ela sabia que ele nada faria. Era respeitoso demais para isso. Não correria o risco de prejudicar alguém para satisfazer sua própria vontade.

Ela sorriu e se foi. Ao olhar pra trás, ele já não estava mais lá. Já dentro do carro, observou sua janela e, enfim, chorou. Se duas pessoas se amam com tanta força, carinho e respeito, que tipo de segredos a vida reserva para que elas não fiquem juntas? Existem tantos tipos diferentes de amor... E esse amor que sentia parecia completamente diferente de qualquer coisa que tenha lido ou ouvido. Não era capaz de categorizá-lo.

Certa vez, anos depois da despedida, sentiu um cheiro familiar em uma loja de material de construção. “Blue Jeans!”, o nome brilhou em sua memória. Percorreu os corredores como um cão farejador, aproximando-se cada vez do foco, em um jogo de quente ou frio. Esquentando, esquentando... Até que de repente esfriou. Voltando alguns passos para trás, a decepção. Ele não estava lá. Um senhor possivelmente 30 anos mais velho que ele, mas com o mesmo gosto para perfume, sim. Após três cafés expressos, dois para beber e um apenas para cheirar, conseguiu se esquecer da lembrança e continuar seu caminho. Até a próxima vez.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O dia em que Maria saiu da vala


Com as pupilas dilatadas, ombros alinhados e cabelos bagunçados, Maria cancelou o guincho e saiu sozinha da vala. Embriagada de coragem, não pensou nas pernas de elefante que suportaria ao caminhar fora daquele espaço tão familiar. Em seu dia de dolo eventual, agiu.

Toda a bagagem acumulada ao longo de anos platônicos fora queimada após poucas horas longe da vala. O que começou em faísca se dissipou com um beijo de brisa. Não restou tempo para que Mauro conhecesse seu prato favorito, medos ou verdades. Antes, durante e após o incêndio, Maria não se reconheceria em seu reflexo. Falava e ria como a mulher que gostaria de ser, mas não era.

Ao deixar o plano da imaginação, o conservante perdeu seu prazo de validade. Alimentados de expectativa, Maria e Mauro não se permitiram revelar suas identidades. Apegados ao quadro que pintaram um do outro, esperavam nada além daquela imagem.

Após despejar uma porção de culpa na vala e outra em seus pés, Maria já não se empenha em entender as cinzas que restaram. Mauro não a conheceu, apenas saiu do imaginário. Aliviada, ela percebeu que prefere a rachadura, a ferida latejante, a vergonha e a raiva, do que a estagnação da vala. Caminho sem volta, moça Maria.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A calçada e suas pedras coloridas


Entre pequenos saltos e passos tão largos que desequilibravam seu corpo, Nina escolhia cuidadosamente cada pedra que seria tocada por seus pés na calçada. Desde que saíra da prisão colo/carrinho decidiu que seu caminho seria trilhado de acordo com as pedras coloridas. Vista de fora, era uma criança a divertir-se e atrasar a mãe apressada. Mas, para Nina, cada pedra era um signo a ser respeitado e analisado.

Cercada por uma realidade feita de bonecas, maquiagens e meninas tão críticas quanto mulheres de 30, Nina era esquisita. Não se importava com vestidos, fitas e presilhas de cabelo. Tentou, mas suas amizades não duravam mais do que dois dias. Porém, o mais engraçado é que não se importava com isso. Dificilmente se dava conta das diferenças discrepantes perante as colegas de sala. Apenas seguia as pedras coloridas e imaginava o que encontraria quando elas acabassem. Achava as outras garotas bobas por se envolverem com tão pouco, diante da riqueza de possibilidades na calçada.

Para Nina, cada uma das pedras significava uma escolha. Essa escolha a direcionava para determinado mundo, entre os tantos que haviam de existir por aí. Às vezes, antes de dormir, detalhava cada um deles. Então percebia a dificuldade que enfrentaria para chegar onde queria, com tantas pedras a serem pisadas. Uma única pedra poderia desvia-la para outro mundo e, talvez, fazer com que nunca encontrasse o caminho de volta ao ponto de partida. Perdia o sono com essa hipótese. Ainda assim, levantava cheia de vontade de arriscar.

Em uma terça-feira qualquer, a caminho da escola, seu irmão mais velho ria e implicava com a distância de três metros entre Nina e o resto da família. Claro que ela estava para trás. Precisava pensar antes de pisar nas pedras. “Uma vez eu vi em um programa de televisão que isso é uma doença, sabia? Essa doença deixa as pessoas loucas, pulando de pedrinha em pedrinha. Aí, depois de um tempo, a pessoa morre”, ele disse.

Nina nem notou a repreensão da mãe diante da brincadeira do irmão. Apenas ficou paralisada, com uma das pernas no ar e as sobrancelhas arqueadas. Uma doença... Então não existiam mundos diferentes. Ela era a única diferente ali, a louca.

Desde então, se esforçou para fingir interesse com a Barbie Tropical em uma das mãos. Sorriu para as colegas quando elas comentaram sobre um seriado da TV e dançaram uma coreografia sincronizada. Desiludida e triste, porém com a certeza de que este é o único mundo que está ao seu alcance, atuou por muitos anos, até se esquecer de que era apenas uma atriz e se enxergar como protagonista de um mundo que detesta. Nina perdeu o caminho de volta ao ponto de partida e agora caminha conforme os demais.