domingo, 10 de novembro de 2013

Quando eu lavo a louça

Hoje eu descobri mais uma coisa nova sobre mim. Acho que na minha idade é assim mesmo que acontece. Até outro dia eu não pensava sobre o pensar, sobre o sentir, sobre o falar. Agora, se existe algo que faço constantemente, é tentar me entender.

Hoje eu percebi que eu só lavo a louça quando estou triste. Em um dia regular, com sentimentos equilibrados, eu deixo os pratos pra depois. Jogo uma água por cima e os abandono na pia, aguardando meus dedos aborrecidos.

Se triste, não fica uma xícara. Para cada faca, detergente imediato. Cada lágrima, um copo. Talvez você imagine, então, que uma pilha de louças na cozinha seja parte da decoração. Afinal, quem passa tanto tempo triste ao ponto de manter a limpeza impecável? De fato, na maioria dos dias da semana, entorpecida pela rotina, há algo dentro da pia.

Se pra tudo há um lado positivo, esse é o de ficar triste desde que virei gente grande: ordem. Já não fico deitada na cama, assistindo filmes com enredo parecido com o da minha vida, pedindo colo. Eu limpo. Eu arrumo. Eu lavo. Qualquer coisa que não me deixe parada.

Lembro-me de pensar que Belchior falara uma grande bobagem. Mas hoje, toda vez que eu me desespero ao ver que a última colher já foi e começo a olhar em volta, planejando o próximo passo doméstico, enxergo a minha mãe. Estou sentada no banquinho da cozinha enquanto assisto ao seu show de malabarista, preparando a panela, guardando o que já foi utilizado, limpando o balcão, levantando da mesa do almoço direto para a máquina de lavar. E eu pedia pra ela parar, fazer depois, sentar no sofá.

Espero que com ela funcione da forma contrária. Mãe, você rodopiava pela casa com a vassoura em uma mão, um pano de prato no ombro e um lenço no cabelo por que estava feliz, não é? Era só mania? Você é mesmo organizada ou sofria?

É mãe, toda vez que eu aumento o volume do rádio e canto o mesmo refrão repetidamente, entre espumas e restos de comida molhada, acho que entendo o que você sentia quando, com um suspiro, dizia: “essa música é minha!”.

Olhos nos olhos 
Quero ver o que você faz 
Ao sentir que sem você eu passo bem demais


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

João do brilho

João desliza o pano do farol traseiro até o dianteiro, deixando um rastro de brilho. Surfa com os dedos. Devagar. Acaricia o B, o M e depois o W. Gosta de deixar a melhor parte para o final. Com fones de ouvido, se vê com o teto solar aberto, a serra verde e o mar logo abaixo. Sua mulher reclamando do vento enquanto segura os cabelos, o sol queimando seu braço esquerdo, que dança do lado de fora. As costas afagadas pelo couro, os óculos escuros no rosto. Cantando alto.
A mão pesada que toca seu ombro em sinal de alerta funciona como um pneu furado. 

João cuida daquilo que nunca poderá ser seu. Passa seus dias dentro de um furacão de folhas de cheque, jaquetas de couro e brincos de pedras coloridas. Preciosas, imagina. É invisível em meio aos astros do salão. Uma estrela apagada.

Afinal, o que é um carro? Peças engenhosas que, juntas, nos levam de um lugar até o outro? “Só existem três daquele modelo ali no Brasil, a senhora acredita?”, João responde. “Imagina ser um desses três caboclos? Cê tá é doido, eu vendia até minha mãe e morava dentro dele, de tanto luxo que é”.
Após ouvir o vendedor enumerar suas funcionalidades (só falta uma máquina de café expresso no porta-luvas), uma senhora com cheiro de laquê elogia o brilho da lataria preta. De longe, João sorri.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O velho

Sentada no chão gelado da sacada, Violeta observava os apartamentos acesos do prédio em frente. Entre pessoas assistindo televisão, uma cena lhe fez parar. Um senhor – era possível perceber que não era um garoto pela cabeça branca – era o único em pé, no centro de uma roda de cinco pessoas sentadas. Um ritual satânico? “Imagem e Ação”? Um cara como o tio Armando, que gosta de atenção exclusiva pra si e seus lamentos raivosos? Só ao notar os aplausos e o baralho percebeu. O velho era mágico. Terça-feira, 19 horas e 48 minutos, e o velho apresentava um truque àquelas pessoas.

Perguntou-se quão apaixonado seria o velho por seu baralho e o espanto que causa. “Admiro quem sabe o que quer fazer da vida”, pensou, antes de esticar os braços atrás da cabeça e tentar aconchegar-se na porta de vidro. De olhos fechados, imaginou o velho com 1,43 metros de altura, usando uma cartola preta e uma capa. Juntando dinheiro para cursos. Animando festas. Reclamando do Mister M.

Olhando o velho, Violeta soube. E, antes de ficar feliz, relutou. Relutou por que sempre soube. Aquela voz tímida, quase rouca, que dentro dela sempre repetiu o mesmo. Sempre relutou. Sempre desistiu. “Eu admiro quem sabe o que quer da vida e, de fato, faz”.

terça-feira, 14 de maio de 2013

A unha da verdade


Demorou a entender que, ao segurar seu queixo com a mão, o pai estava analisando seu rosto, não fazendo carinho. A explicação por trás dos olhares e sussurros desconfiados nos encontros familiares foi procrastinada. As visitas da madrinha tiveram fim. Se presente de corpo, era peça rejeitada.

Escondida atrás da porta, ouviu a mãe chorar. Carregada de culpa e vazia de esclarecimento, aos 10 anos de idade Marta não fugiu, queria saber. Suas dúvidas foram varridas pela avó, junto com o resto da sujeira indesejada para fora da casa.

Foi a filha da vizinha que, brava por perder o posto de rainha da amarelinha, a chamou de bastarda. Diante de seus olhos de coruja, ela gritou toda a história que ouviu na cozinha após o almoço de domingo. Em frente ao espelho, com os olhos marejados, Marta viu os traços do padrinho. Os olhos grandes, as orelhas pequenas... A mãe negou. Tudo fofoca, gente desocupada, invejosa e mal amada.

Se o assunto era proibido, poderia calar sua mente? Marta virou adolescente sem que o pai a olhasse nos olhos. Sentia culpa por nascer. A saliva queimava a garganta ao descer, empurrando o choro pra dentro de si. O choro, a raiva e as perguntas. Ensurdecia diante dos gritos da mãe que, enfurecida pelas brigas eventuais, chamava o pai de homem oco. Depois ajoelhava, pedia perdão e ele cedia. 

O peso da tristeza era medido em toneladas, não havia guindaste forte o bastante para tira-la da cama. Perdeu dois anos de escola, a mãe dizia que estava doente. Caxumba, catapora, cistite e conjuntivite. Desejava intimamente que a mãe chorasse sangue, carregasse o peso de sua dor e assinasse a confissão. Ao invés disso, aprendeu a conviver com o silêncio. Em tempos remotos, sem exames de DNA, atravessou a vida sem saber. 

Ano após ano, a madrinha adoeceu. Na visita, já não havia olhar cerrado, só compaixão. O padrinho, com os cabelos grisalhos, acariciou sua cabeça como fazia quando criança. Falou sem dizer. Pouco tempo depois ele se foi, a madrinha o seguiu e a mãe não demorou. No leito de morte do pai, pediu licença aos presentes, para a despedida. Munida de uma tesoura, arrancou a unha da mão que antes apertava seu queixo e agora um crucifixo. Por ser, enfim, a única capaz de se ferir, deixaria de viver morta para renascer.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Sem título e sem desfecho


Os pés de Julia estão atados ao chão de tal maneira que não lhe permitem sonhar. No plano térreo do racional, todo devaneio é cortado pela raiz ou pisoteado pelos pés que a sustentam, mas não levam a nenhum lugar. A menina foi acometida por uma doença grave que alterou por completo o percurso de sua vida: a desilusão.

Traída pelo amor, que por anos manteve o disfarce de aliado, descobriu-se obrigada a libertar quem gostaria de prender. O querer estar perto deve ser natural ao coração. O seu estava repleto, dificultando a interpretação das mensagens do outro ao mostrar que o dele não. Não mais. Entre tantas opções sinceras, escolheu a mais dolorosa de partir.

Transformada em rocha, seu olhar petrificou. Não enxerga nada que valha o risco de caminhar fora da fortaleza que criou. Recebe olhares e os ignora. Das pessoas interessantes que cruzam seu caminho, realça os defeitos. Mês passado encantou-se com o sorriso de um homem no mercado. Na dúvida, não sorriu de volta. Desde então vai sempre ao mesmo local, na esperança de reencontra-lo. Talvez nunca mais.

Julia não se permite viver, por acreditar que já conhece o desfecho da história sem esta ao menos começar. Menina Julia, o desfecho não existe. Os momentos sim. E a beleza em alguns deles vale por mil desfechos ruins.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um rojão de presente para Ian


Como mero espectador de sua própria rotina, Ian saía do supermercado no piloto automático, dirigindo sem, de fato, guiar. Realizava o mesmo percurso do trabalho às compras toda terça-feira. Banana, pão, iogurte, ovo e papel higiênico. O CD do Metallica já fazia aniversário no rádio. Pra que trocar se aquele era tão bom?

Na subida o carro teve uma crise de tosse e parou. Sem ninguém atrás, desceu no ponto morto até o plano, em frente a uma casa que, pela exibição de um sofá rasgado e jardim que imitava floresta, parecia abandonada. Sentado dentro do carro, Ian abriu a janela enquanto pensava quem poderia socorrê-lo. A mãe o chamaria de burro. O colega do trabalho zombaria da constante falta de atenção. O seguro é pago para ficar calado.

Com o celular em uma das mãos e o cartão na outra, a onda de gritos que se aproximava conseguiu a proeza de chama-lo ao seu encontro. Um senhor descalço, com barba e cabelos longos, vestindo apenas uma cueca samba canção rasgada, atravessava o portão da casa repetindo que iria mata-lo se ligasse para a polícia. “Que velho louco”, pensou, seguido do clarão que voou da mão do senhor, cruzou a janela e pousou em seu colo, dentro do carro. Um rojão. Surpreendido pelo próprio reflexo, Ian espalmou o objeto, prestes a explodir, para o banco do passageiro. Ao abrir a porta do carro, viu sangue espirrar na janela. Não poderia ser seu, não sentia dor. Não pensava, não ouvia e não movia um dedo do corpo, em pé na calçada. Estava morto por dentro, na casca de um corpo vivo e machucado.

Segundos depois estava correndo rua abaixo, flutuava, sem controle das próprias pernas, enquanto o velho o seguia com um revólver nas mãos. Sentado dentro da guarita de um prédio, notou as luzes vermelhas com a chegada da polícia. O velho foi levado. Ian não conseguia ouvir as perguntas que lhe eram feitas na delegacia. Tão pouco conseguia contar o ocorrido. Abria a boca, mas as palavras não saiam. O velho foi solto.

No primeiro mês o portão da casa tornou-se seu limite. Só ia até o quintal, seu campo minado. No segundo, limitou-se a porta de entrada. Um passo em falso poderia tirar-lhe o último sopro. No terceiro, sentia frio na espinha ao deixar seu quarto para ir ao banheiro. Via pessoas atrás dos móveis. Seis meses depois, parecia ter acabado de assistir um filme de terror, durante todo o dia. Em uma manhã, após o recorde de quatro horas de sono seguidas, decidiu que sairia para comprar pão.

O carro estava limpo, mas ele enxergava as sombras das gotas de sangue. Conforme acelerava, o que restou da janela tremia e os pelos do braço eriçavam. Aproximando-se da padaria mais próxima, não teve coragem de parar. Enquanto o carro estava em movimento sentia-se seguro. Se deixasse aquele espaço qualquer coisa poderia acontecer. Passou em frente à segunda padaria. Terceira. Quarta. Saiu de São Paulo. Abasteceu o carro sem conversar com o frentista. Sem dormir, chegou a Rondonópolis, Mato Grosso.

Exausto, com dor no corpo todo, entrou no estacionamento de um shopping center. O lugar parecia seguro, abarrotado de pessoas apressadas, entrando e saindo. Mas o que era seguro? Com medo da morte, Ian não vivia. Adormeceu lembrando-se do cheiro do bolo de fubá da mãe, das ofensas que disse ao amigo de infância, do desastroso primeiro beijo e do velho de cueca samba canção.

Ao despertar com a mão que batia com força no vidro, já não temia. Poderia fazer qualquer coisa. Era capaz de quebrar o vidro com as próprias mãos para apertar aquela que o acordava. Não se importava com a violência do som. Queria sentir.

O publicitário/paulista/classe média alta fez do carro sua casa durante 15 dias, nas sombras do estacionamento daquele shopping. A mão baixou a guarda, ouviu sua história e abriu as portas dos banheiros para que se lavasse, até conseguir um emprego. Ganhou um amigo.

Como redator em uma agência de publicidade, teve tempestades de ideias. Ouviu atentamente a intuição. Não existia vestígio de vergonha ao dizer o que passava pela cabeça. Nada a perder. Foi morar em um hotel, custeado pelo dono da empresa. Três anos depois voltou a São Paulo, dessa vez de avião. Sem receio e com os olhos grudados na janela, aproveitou cada minuto no céu, pela primeira vez.

Para Ian, o futuro não existe. O passado é exato, com cada vitória e derrapagem, por ser a ponte que lhe trouxe ao real: o presente. O minuto em que respira e sente. O espaço em que a vida acontece e é possível agir, ao invés de planejar ou lamentar. Podem vir, velhos loucos. Ele não tem medo de vocês.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Medo do escuro


O encontro da porta com o batente emitiu um som leve, seguido do tilintar das chaves dançando no buraco da fechadura. Habituada pelo medo que sente do escuro, acendeu todas as luzes da casa e aumentou o volume da música. Lembrou-se da mãe que, para solidarizar-se com a sua aflição infantil, contou que costumava cantar “Atirei o pau no gato” bem alto, ao caminhar no breu de sua infância. Com os olhos semicerrados e as mãos cobrindo os ouvidos, atravessou o corredor até seu quarto em passos rápidos. “Atirei o pau no gato tô, mas o gato tô, não morreu reu reu”...

Geralmente, ao saber antecipadamente que ficaria sozinha, convidava uma amiga ou namorado para fazer companhia e se distrair. Daquela vez não foi diferente. Porém, já não namorava ninguém e, diferente de anos atrás, só tinha duas amigas, ocupadas e indisponíveis. Sua única companhia era a TV a cabo e uma caixa de chocolates. Companhias pelas quais pagou. Afinal, existe companhia gratuita ou há sempre um preço? Ao ouvir alguém triste, sentia pena. Com alguém feliz, insatisfeita.

Durante as reuniões e cafés no trabalho, senta-se com a coluna ereta, sua fala é acompanhada por gestos enfáticos e a voz sai firme de seus lábios. Na escola, era sempre a primeira a ser escolhida nas aulas de educação física, amiga de todos os esportes. Líder, apresenta solução e guia o grupo. Sozinha, não sabe quem é.

No escuro seus defeitos brilham diante dos olhos. Sem ninguém para ouvir sobre a certeza, duvida das próprias escolhas. Não há nada capaz de lhe tirar de dentro de si. Seu segredo é revelado cada vez em que a luz se apaga e a companhia se torna silêncio. A solidão é o convite para ser apresentada a si mesma, com a coluna torta, a voz trêmula e o medo de errar o passo.

Saltando ferozmente de canal em canal, desiste. Na sacada, olhando para a rua viva lá embaixo, tem o rosto preso pela tela de fios de nylon. A proteção conforta, mas limita seu campo de visão. Em um impulso invisível, corta as extremidades da tela, uma por uma. Já não existem losangos dividindo o horizonte. Sente-se livre dentro da própria prisão. Com a luz apagada, sem ninguém por perto nem nada a provar, é dona de si, com uma tesoura nas mãos.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Adeus na tangente


Silêncio. Não por não terem nada a dizer, mas a vontade era outra. Ao levantarem-se do sofá para se despedir, viraram de frente um para o outro. Depois de tanto tempo sem se ver, sabiam que dali pra frente isso só tendia a piorar. A trilha que cada um seguia em paralelo desembocava agora em um cruzamento, prestes a dividi-los em lados opostos. Talvez, dali uns anos, poderiam se esbarrar em uma fila de banco, mas não daquela forma. Não naquele sofá.

Lutando contra sua boca que parecia ter os cantos puxados para baixo por dois fios de nylon, ela controlou os olhos marejados, como se houvessem rolhas capazes de estancar a água. Como era difícil dizer tchau dessa vez. Tchau com gosto salgado de adeus.

Na última vez em que isso aconteceu tinha certeza de que se encontrariam em um momento mais favorável da vida. Um engano. Afastaram-se de passo em passo e, agora, nessa pequena tangente, toda possibilidade de alteração de rota se desfazia.

Puxou-o pra perto, impulsiva que é, e envolveu os braços em seu pescoço. Equilibrando-se na ponta dos pés, repousou a cabeça em seu ombro. “Blue Jeans. Você ainda usa esse perfume... Esse cheiro é tão seu”, disse baixo, com medo de ser ouvida. Ele apertou sua cintura com a força de uma jiboia em ataque de constrição. Queria sufocá-la e prendê-la como não fez desde que se conheceram.

Ali permaneceram nos minutos seguintes, em um teste para ver quem resistiria primeiro. “Vá embora logo, sério. Se você falar qualquer coisa eu vou te beijar”, ele avisou, libertando-a. Ela sabia que ele nada faria. Era respeitoso demais para isso. Não correria o risco de prejudicar alguém para satisfazer sua própria vontade.

Ela sorriu e se foi. Ao olhar pra trás, ele já não estava mais lá. Já dentro do carro, observou sua janela e, enfim, chorou. Se duas pessoas se amam com tanta força, carinho e respeito, que tipo de segredos a vida reserva para que elas não fiquem juntas? Existem tantos tipos diferentes de amor... E esse amor que sentia parecia completamente diferente de qualquer coisa que tenha lido ou ouvido. Não era capaz de categorizá-lo.

Certa vez, anos depois da despedida, sentiu um cheiro familiar em uma loja de material de construção. “Blue Jeans!”, o nome brilhou em sua memória. Percorreu os corredores como um cão farejador, aproximando-se cada vez do foco, em um jogo de quente ou frio. Esquentando, esquentando... Até que de repente esfriou. Voltando alguns passos para trás, a decepção. Ele não estava lá. Um senhor possivelmente 30 anos mais velho que ele, mas com o mesmo gosto para perfume, sim. Após três cafés expressos, dois para beber e um apenas para cheirar, conseguiu se esquecer da lembrança e continuar seu caminho. Até a próxima vez.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O dia em que Maria saiu da vala


Com as pupilas dilatadas, ombros alinhados e cabelos bagunçados, Maria cancelou o guincho e saiu sozinha da vala. Embriagada de coragem, não pensou nas pernas de elefante que suportaria ao caminhar fora daquele espaço tão familiar. Em seu dia de dolo eventual, agiu.

Toda a bagagem acumulada ao longo de anos platônicos fora queimada após poucas horas longe da vala. O que começou em faísca se dissipou com um beijo de brisa. Não restou tempo para que Mauro conhecesse seu prato favorito, medos ou verdades. Antes, durante e após o incêndio, Maria não se reconheceria em seu reflexo. Falava e ria como a mulher que gostaria de ser, mas não era.

Ao deixar o plano da imaginação, o conservante perdeu seu prazo de validade. Alimentados de expectativa, Maria e Mauro não se permitiram revelar suas identidades. Apegados ao quadro que pintaram um do outro, esperavam nada além daquela imagem.

Após despejar uma porção de culpa na vala e outra em seus pés, Maria já não se empenha em entender as cinzas que restaram. Mauro não a conheceu, apenas saiu do imaginário. Aliviada, ela percebeu que prefere a rachadura, a ferida latejante, a vergonha e a raiva, do que a estagnação da vala. Caminho sem volta, moça Maria.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A calçada e suas pedras coloridas


Entre pequenos saltos e passos tão largos que desequilibravam seu corpo, Nina escolhia cuidadosamente cada pedra que seria tocada por seus pés na calçada. Desde que saíra da prisão colo/carrinho decidiu que seu caminho seria trilhado de acordo com as pedras coloridas. Vista de fora, era uma criança a divertir-se e atrasar a mãe apressada. Mas, para Nina, cada pedra era um signo a ser respeitado e analisado.

Cercada por uma realidade feita de bonecas, maquiagens e meninas tão críticas quanto mulheres de 30, Nina era esquisita. Não se importava com vestidos, fitas e presilhas de cabelo. Tentou, mas suas amizades não duravam mais do que dois dias. Porém, o mais engraçado é que não se importava com isso. Dificilmente se dava conta das diferenças discrepantes perante as colegas de sala. Apenas seguia as pedras coloridas e imaginava o que encontraria quando elas acabassem. Achava as outras garotas bobas por se envolverem com tão pouco, diante da riqueza de possibilidades na calçada.

Para Nina, cada uma das pedras significava uma escolha. Essa escolha a direcionava para determinado mundo, entre os tantos que haviam de existir por aí. Às vezes, antes de dormir, detalhava cada um deles. Então percebia a dificuldade que enfrentaria para chegar onde queria, com tantas pedras a serem pisadas. Uma única pedra poderia desvia-la para outro mundo e, talvez, fazer com que nunca encontrasse o caminho de volta ao ponto de partida. Perdia o sono com essa hipótese. Ainda assim, levantava cheia de vontade de arriscar.

Em uma terça-feira qualquer, a caminho da escola, seu irmão mais velho ria e implicava com a distância de três metros entre Nina e o resto da família. Claro que ela estava para trás. Precisava pensar antes de pisar nas pedras. “Uma vez eu vi em um programa de televisão que isso é uma doença, sabia? Essa doença deixa as pessoas loucas, pulando de pedrinha em pedrinha. Aí, depois de um tempo, a pessoa morre”, ele disse.

Nina nem notou a repreensão da mãe diante da brincadeira do irmão. Apenas ficou paralisada, com uma das pernas no ar e as sobrancelhas arqueadas. Uma doença... Então não existiam mundos diferentes. Ela era a única diferente ali, a louca.

Desde então, se esforçou para fingir interesse com a Barbie Tropical em uma das mãos. Sorriu para as colegas quando elas comentaram sobre um seriado da TV e dançaram uma coreografia sincronizada. Desiludida e triste, porém com a certeza de que este é o único mundo que está ao seu alcance, atuou por muitos anos, até se esquecer de que era apenas uma atriz e se enxergar como protagonista de um mundo que detesta. Nina perdeu o caminho de volta ao ponto de partida e agora caminha conforme os demais.