quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um rojão de presente para Ian


Como mero espectador de sua própria rotina, Ian saía do supermercado no piloto automático, dirigindo sem, de fato, guiar. Realizava o mesmo percurso do trabalho às compras toda terça-feira. Banana, pão, iogurte, ovo e papel higiênico. O CD do Metallica já fazia aniversário no rádio. Pra que trocar se aquele era tão bom?

Na subida o carro teve uma crise de tosse e parou. Sem ninguém atrás, desceu no ponto morto até o plano, em frente a uma casa que, pela exibição de um sofá rasgado e jardim que imitava floresta, parecia abandonada. Sentado dentro do carro, Ian abriu a janela enquanto pensava quem poderia socorrê-lo. A mãe o chamaria de burro. O colega do trabalho zombaria da constante falta de atenção. O seguro é pago para ficar calado.

Com o celular em uma das mãos e o cartão na outra, a onda de gritos que se aproximava conseguiu a proeza de chama-lo ao seu encontro. Um senhor descalço, com barba e cabelos longos, vestindo apenas uma cueca samba canção rasgada, atravessava o portão da casa repetindo que iria mata-lo se ligasse para a polícia. “Que velho louco”, pensou, seguido do clarão que voou da mão do senhor, cruzou a janela e pousou em seu colo, dentro do carro. Um rojão. Surpreendido pelo próprio reflexo, Ian espalmou o objeto, prestes a explodir, para o banco do passageiro. Ao abrir a porta do carro, viu sangue espirrar na janela. Não poderia ser seu, não sentia dor. Não pensava, não ouvia e não movia um dedo do corpo, em pé na calçada. Estava morto por dentro, na casca de um corpo vivo e machucado.

Segundos depois estava correndo rua abaixo, flutuava, sem controle das próprias pernas, enquanto o velho o seguia com um revólver nas mãos. Sentado dentro da guarita de um prédio, notou as luzes vermelhas com a chegada da polícia. O velho foi levado. Ian não conseguia ouvir as perguntas que lhe eram feitas na delegacia. Tão pouco conseguia contar o ocorrido. Abria a boca, mas as palavras não saiam. O velho foi solto.

No primeiro mês o portão da casa tornou-se seu limite. Só ia até o quintal, seu campo minado. No segundo, limitou-se a porta de entrada. Um passo em falso poderia tirar-lhe o último sopro. No terceiro, sentia frio na espinha ao deixar seu quarto para ir ao banheiro. Via pessoas atrás dos móveis. Seis meses depois, parecia ter acabado de assistir um filme de terror, durante todo o dia. Em uma manhã, após o recorde de quatro horas de sono seguidas, decidiu que sairia para comprar pão.

O carro estava limpo, mas ele enxergava as sombras das gotas de sangue. Conforme acelerava, o que restou da janela tremia e os pelos do braço eriçavam. Aproximando-se da padaria mais próxima, não teve coragem de parar. Enquanto o carro estava em movimento sentia-se seguro. Se deixasse aquele espaço qualquer coisa poderia acontecer. Passou em frente à segunda padaria. Terceira. Quarta. Saiu de São Paulo. Abasteceu o carro sem conversar com o frentista. Sem dormir, chegou a Rondonópolis, Mato Grosso.

Exausto, com dor no corpo todo, entrou no estacionamento de um shopping center. O lugar parecia seguro, abarrotado de pessoas apressadas, entrando e saindo. Mas o que era seguro? Com medo da morte, Ian não vivia. Adormeceu lembrando-se do cheiro do bolo de fubá da mãe, das ofensas que disse ao amigo de infância, do desastroso primeiro beijo e do velho de cueca samba canção.

Ao despertar com a mão que batia com força no vidro, já não temia. Poderia fazer qualquer coisa. Era capaz de quebrar o vidro com as próprias mãos para apertar aquela que o acordava. Não se importava com a violência do som. Queria sentir.

O publicitário/paulista/classe média alta fez do carro sua casa durante 15 dias, nas sombras do estacionamento daquele shopping. A mão baixou a guarda, ouviu sua história e abriu as portas dos banheiros para que se lavasse, até conseguir um emprego. Ganhou um amigo.

Como redator em uma agência de publicidade, teve tempestades de ideias. Ouviu atentamente a intuição. Não existia vestígio de vergonha ao dizer o que passava pela cabeça. Nada a perder. Foi morar em um hotel, custeado pelo dono da empresa. Três anos depois voltou a São Paulo, dessa vez de avião. Sem receio e com os olhos grudados na janela, aproveitou cada minuto no céu, pela primeira vez.

Para Ian, o futuro não existe. O passado é exato, com cada vitória e derrapagem, por ser a ponte que lhe trouxe ao real: o presente. O minuto em que respira e sente. O espaço em que a vida acontece e é possível agir, ao invés de planejar ou lamentar. Podem vir, velhos loucos. Ele não tem medo de vocês.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Medo do escuro


O encontro da porta com o batente emitiu um som leve, seguido do tilintar das chaves dançando no buraco da fechadura. Habituada pelo medo que sente do escuro, acendeu todas as luzes da casa e aumentou o volume da música. Lembrou-se da mãe que, para solidarizar-se com a sua aflição infantil, contou que costumava cantar “Atirei o pau no gato” bem alto, ao caminhar no breu de sua infância. Com os olhos semicerrados e as mãos cobrindo os ouvidos, atravessou o corredor até seu quarto em passos rápidos. “Atirei o pau no gato tô, mas o gato tô, não morreu reu reu”...

Geralmente, ao saber antecipadamente que ficaria sozinha, convidava uma amiga ou namorado para fazer companhia e se distrair. Daquela vez não foi diferente. Porém, já não namorava ninguém e, diferente de anos atrás, só tinha duas amigas, ocupadas e indisponíveis. Sua única companhia era a TV a cabo e uma caixa de chocolates. Companhias pelas quais pagou. Afinal, existe companhia gratuita ou há sempre um preço? Ao ouvir alguém triste, sentia pena. Com alguém feliz, insatisfeita.

Durante as reuniões e cafés no trabalho, senta-se com a coluna ereta, sua fala é acompanhada por gestos enfáticos e a voz sai firme de seus lábios. Na escola, era sempre a primeira a ser escolhida nas aulas de educação física, amiga de todos os esportes. Líder, apresenta solução e guia o grupo. Sozinha, não sabe quem é.

No escuro seus defeitos brilham diante dos olhos. Sem ninguém para ouvir sobre a certeza, duvida das próprias escolhas. Não há nada capaz de lhe tirar de dentro de si. Seu segredo é revelado cada vez em que a luz se apaga e a companhia se torna silêncio. A solidão é o convite para ser apresentada a si mesma, com a coluna torta, a voz trêmula e o medo de errar o passo.

Saltando ferozmente de canal em canal, desiste. Na sacada, olhando para a rua viva lá embaixo, tem o rosto preso pela tela de fios de nylon. A proteção conforta, mas limita seu campo de visão. Em um impulso invisível, corta as extremidades da tela, uma por uma. Já não existem losangos dividindo o horizonte. Sente-se livre dentro da própria prisão. Com a luz apagada, sem ninguém por perto nem nada a provar, é dona de si, com uma tesoura nas mãos.