segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A ternura na barba de Zé Albano

Pés sempre descalços andando pelas folhas secas no chão, “crec, crec, crec”... É a trilha sonora do seu cotidiano. Gosta de usar a mesma roupa até ficar tão enjoado que não pode nem avistá-la por um tempo. A barba grisalha e comprida esconde um rosto comum e histórias nada convencionais. 

José Cordeiro Albano tem 67 anos e há 26 destes sobe e desce a escada de madeira que dá acesso ao seu “quarto” (um mezanino rústico no canto da sala de sua casa) com a habilidade de um gato. A casa, feita de taipa, é repleta de luzes coloridas. Obra daquele quem Zé considera seu Deus, o sol, refletindo nas mais de 50 garrafas dispostas pelo barro nas paredes.

A Comunidade Alternativa Sabiaguaba, fundada por ele, fica na periferia de Fortaleza, bairro Lagoa Redonda. Próxima demais do centro para ser considerada rural (são 17 km), mas distante o suficiente para fugir da agitação. Foi em 1975 que, junto à sua ex-mulher Regina Lima, decidiu que a vida de correria, trânsito e confusão não combina com a vontade de estar perto da natureza, das picadas de muriçoca e do estilo de vida que busca manter.

Sua primeira visita ao planeta do movimento alternativo foi motivada “pelas tripas”. Até os 21 anos sofria com uma prisão de ventre terrível e se alimentava muito mal. Assim, sem acreditar em coincidências, enquanto folheava uma revista velha a fim de se distrair do desconforto da sala de espera de seu dentista, deparou-se com uma matéria sobre os benefícios da fibra na alimentação. “Funcionou como um chamado! Eu não acreditava no que estava lendo”, conta enquanto ri. Hoje, grãos integrais não faltam na pequena bancada de madeira de sua cozinha. 

Caixa de papelão, papel alumínio e plástico. O que pode parecer lixo, para Albano significa forno solar. Após descobrir a maneira ecológica de cozinhar alimentos no site de duas pesquisadoras americanas, ele adaptou o objeto à luz do Ceará, transformando-o em um perfeito girassol. Ainda lembra a primeira experiência, ao cozinhar arroz com lentilha. “Assim que eu abri a tampa da panela fui envolvido por um aroma incrível! Como o forno retém todo o calor do sol, não existe comida tão saborosa e cheirosa quanto a feita no forno solar”.

Entre palestras e oficinas, Zé ensina como construir seu próprio forno e preparar os alimentos, além de hastear a bandeira dos benefícios ao meio ambiente. “Usar um forno solar significa cooperar com a preservação da natureza, reciclando materiais do lixo e usando uma fonte gratuita, renovável, e inesgotável de energia – a energia solar – e, ao mesmo tempo, reduzindo a dependência dos combustíveis fósseis (gás) e dos recursos florestais (lenha e carvão)”, explica.

O cearense é fotógrafo por profissão e educador por escolha. Isso porque, diariamente, os meninos que vivem ao redor de sua terra fazem a festa em sua casa e sua mata. São os Albanitos. Projeto que teve início em 1986, quando seu afilhado Ares foi passar férias com ele e convidou alguns dos garotos para jogar bola no espaço. “Eles nunca mais saíram daqui. Passaram a convidar os primos, amigos, depois os irmãos mais novos... São 24 anos de gerações e mais gerações de Albanitos”, relembra entusiasmado.

Entre alegrias e decepções, os garotos são o que Zé considera sua contribuição para o mundo. Os ensina a tirar fotos, a usar o computador, os acolhe e entrega de bandeja seus tesouros, contidos no acervo de mais de 200 livros e discos de vinil.

Alguns presos, outros bem empregados, muitos perdidos em drogas e até mesmo morando na casa ao lado. Idelbrando Coelho é da primeira geração de Albanitos. A partir dos oito anos de idade dividia seus dias entre o futebol, o violão e o colo de Zé. “Aos 14 já dormia por aqui, e quando me dei conta me sentia como um filho”, conta o atual padeiro e músico. Aprendeu a fazer pão observando o novo pai e ganhou o primeiro violão de uma frequentadora da comunidade.

Mas é a família de sangue que se preocupa com Zé. “Esse homem é muito bom, mas muito mesmo. Tão bom que não vê maldade em ninguém, e esses meninos abusam demais disso”, é o que pensa sua sobrinha, Maria Augusta Albano, com medo de que o tio seja ameaçado pela presença dos jovens. “O problema é que para se dar bem com o Zé é preciso aceitar que para ele são os Albanitos em primeiro lugar, depois o resto. Isso após ter sido roubado inúmeras vezes ao longo desses anos”, diz seu irmão Maurício Albano.

Penso que talvez tenha comprado potes de amor incondicional enlatado. Apesar de não ter a mesma confiança nos meninos que tinha anos atrás, o mentor suporta ter sua soneca da tarde perturbada pelos gritos e brincadeiras que invadem as grandes janelas da casa, na esperança de que consiga contribuir para que encontrem direção.

Enquanto dá liberdade para os Albanitos, deixa livre também a fauna e flora a sua volta. Além do chão enfeitado por folhas secas, divide o lar com um sapo que tem atração especial pelo banheiro, uma galinha que protege seus pintinhos com unhas e bicos e o mato que não para de crescer. “Preservo a vida, em todas suas formas. Se o sapo escolheu ficar por aqui, alguma razão há de ter. Se a folha cai, ela deve ter utilidade para o solo. E quem sou eu para achar que tenho direito de cortar o mato? Se alguém cortasse minha barba sem minha autorização eu não gostaria é nada!”. Assim, Zé Albano é a ponte entre todos os elementos vivendo a sua volta. Sejam estes plantas, bichos ou Albanitos, ternura é a lei.

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