terça-feira, 27 de novembro de 2012

Um em um milhão


"Vocês conhecem alguém que ama o que faz e ainda recebe um bom salário por isso? Pera lá, porra... Não estou dizendo um ótimo salário. Um bom salário, só isso. Alguém?!", quase gritou André, com os cotovelos apoiados na mesa de plástico de um boteco e as mãos abertas, viradas para cima. Os amigos calados. Ele tenta convencê-los de que a decisão de desistir do sonho de ser músico para cursar Faculdade de Administração é questão de sobrevivência e bom senso.

André ganhou seu primeiro violão aos três anos de idade. Era de plástico como a mesa daquele bar, mas tinha som. Aquele som embalou seus devaneios noturnos, diurnos e diários durante a infância, adolescência e juventude. Queria viver de música.

Todos os amigos admiram a sua habilidade com o instrumento. O braço do violão parece uma extensão do seu próprio corpo. São íntimos, trocam confidências, encantam e envolvem. Feitos um para o outro.

"Porra, viver de música é como viver de futebol. Um em um milhão! Vocês conhecem alguém que desde moleque dizia que queria ser jogador e conseguiu? Alguém?!", argumentou, apesar do silêncio que ainda pairava na mesa.

A verdade é que, apesar da paixão e coleção de elogios, não acredita que possa ser este um, entre tantos sonhadores disputando uma vaga. Nunca conseguiu assumir, com todas as letras e em voz alta, aquilo o que realmente gostaria de ser quando crescer. Tem medo. Medo de fracassar, de morrer de fome, de se arrepender do tempo perdido. Entra em um quarto escuro e encolhe-se, bebendo de canudo o receio de investir anos e dedilhados em algo que parece impossível tocar.

O vestibular é amanhã. Os livros, anotações, canetas e pastas estão ao seu redor, no chão do quarto. Estão todos encarando-o enquanto ele, de olhos fechados, faz ecoar pela casa o som do sonho, convidando a coragem para entrar.

3 comentários:

  1. nossa, ma, mto bacana o texto!!

    a frase "O braço do violão parece uma extensão do seu próprio corpo" tem respando cientifico. pesquisas em neurociencia diz que quem faz uma atividade com um objeto por mto tempo, se dedicando, estudando, praticando, interioriza tal objeto em sua imagem corporal. nao sei se vc sabia disso, mas de qualquer jeito eh uma otima imagem.
    alem disso, me identifiquei mto com isso, afinal fui estudar filosofia e agora psicologia, coisas que eu gosto muito, mas que nao dao um retorno financeiro tao certo!

    bjuss

    bruno cesar afonso

    ResponderExcluir
  2. Muito legal o texto Má, consegui ver algumas das minhas angustias nele. Vou ficar esperando o próximo

    ResponderExcluir